Embankment #6, resíduo de Eduardo Brito




A N T R O P I A




Uma narração livre de excertos da obra A Short Sense of Omniscience, de Laura Adler.


Esta história baseia-se em factos reais, tal como foram escritos por Laura Adler.



1 – A B E R T U R A


É um instante. Uma fracção de segundo. Como a primeira gota de água que alguma vez caiu no planeta Terra. O momento em que ela se desfaz no solo, o ruído que nenhum ser vivo ouviu. O intervalo em que a gota se parte até se deixar absorver por uma terra que é molhada pela primeira vez.


É um momento em que dois seres humanos entram em relação. Um deles é detentor de um facto que, transmitido ao outro, lhe vai mudar a vida.


Parti-la, tirá-la do sítio, encaminhá-la para um rumo diferente.


Algo que se diz, que se mostra, que se escreve.


Uma arma que se usa.


E tudo muda de lugar.


Estás doente. Estás rico. Morreu. Ele aceitou. [som de tiros]. Envenenei-te. Vou-me embora. Vou ficar. Acabou. Aceito.


Quando ambos se encontram, tem, então, um a suprema sabedoria sobre o outro. Está, então, o outro em profunda ignorância sobre si. É um instante que abre um intervalo. É o momento que acontece entre esse contacto e as vozes que falam. Instante e intervalo são um pequeno sabor de omnisciência.


E depois? Depois o corpo muda de caminho. Reajusta-se. Redefine-se. E prossegue. Vive a sua própria histerese emocional. Entra em refracção.


Isto começa por acontecer em Edimburgo. Estamos em 1898. Edwin Denholm Said tem 36 anos. É professor de Lógica e Metafísica no departamento de Filosofia da Universidade de Edimburgo. Publica um ensaio, “O Intervalo Meta-Antrópico” onde estuda os intervalos que decorrem entre o primeiro contacto e a revelação de um facto ou elemento que muda por completo a vida do seu destinatário. Ou seja, e nas palavras de Said, “O instante em que ambos se avistam e, entrando em comunicabilidade, criam uma relação em desequilíbrio, um numa sabedoria deíficante, o outro numa ignorância pura que transcende todos os corolários lógico-formais da relação antrópica tal como a concebemos”.


Isto acontece também em Toledo. E no mesmo ano de 1898.


Tristán Umbría tem 32 anos. É professor de Geometria Analítica no Colégio de Santa Catalina de Toledo. Fascinado pela matematização das relações humanas, demonstra algo a que chama o “teorema da recorrência refractária”. O teorema, traduzido em equação, estabelece a fórmula analítica da relação de duas estruturas iguais em que uma, portadora de um factor de desequilíbrio da outra, lhe provoca maior ou menor refracção. Com este teorema, Umbría demonstra quer a recorrência lógica dessa relação, quer a sua qualificação como a figura mais próxima da omnisciência que a outra parte, inconscientemente ou não, estaria a presenciar.


Quer isto dizer que Umbría deduziu a fórmula matemática da teoria do Intervalo Meta Antrópico de Said. Ou que Said teorizou a Equação de Umbría. Não interessa o que sucedeu primeiro.


Dois homens, um tempo, duas ciências, uma interpretação.


Umbría, Said, Toledo, Edimburgo. 1898.


A explicação matemática e filosófica de um instante-intervalo de iminente omnisciência:


aquele que acontece no preciso momento em que duas pessoas entram em relação e uma se prepara para mudar o curso à vida da outra. A formulação lógica de uma história que os homens sempre viveram, vivem e hão-de viver.


Eu estou aqui, sei algo sobre ti.

Tu avistas-me e não sabes que o que eu me preparo para dizer te vai mudar a vida. Eu caminho a olhar-te, sei tanto sobre ti, se tu soubesses o quanto eu sei sobre ti, o quanto eu sei sobre a tua vida, sobre o teu futuro que se vai começar a jogar agora.

Eu estou aqui, sei algo sobre ti.




2 – E D I M B U R G O


Edwin Denholm Said nasceu em Edimburgo, no ano de 1862. Era filho do Coronel Sebastian McGinlay Said e de Honoria Trelawney Said. Por força da frágil saúde de sua mãe, teve uma infância solitária, passada em constantes deslocações entre a capital escocesa e costa oeste da Escócia. Contemplativo – dizia-se que eram longas as suas crises de melancolia -, iniciou-se na pintura de paisagens invernais, alcançando relativo sucesso: duas exposições na Landscape Gallery of Scotland nos anos de 1882 e 1888. Em 1881, entrou para a Universidade de Edimburgo onde cursou leis e filosofia. Por lá se manteve toda a vida: primeiro como assistente de Lógica e Metafísica, depois como professor de Filosofia Moral. Privou com o filósofos neo-hegelianos James Seth e Andrew Seth Pringle-Pattison. Os períodos de melancolia de Said alternavam com estados de hiperactividade, repartidos em escassa produção académica e bastantes viagens e pinturas. É num desses momentos frenéticos que se inclui o "Intervalo Meta-Antrópico", precedida do não menos famoso "Ensaio sobre Matéria-Deus", ambos datados de 1898.

Neste último, Said escreve: “Se imaginarmos Deus como o tempo e o espaço do que conhecemos e desconhecemos, é impossível negar a sua existência. Isto porque a partir desta premissa, é admissível a redução de Deus a matéria de qualquer natureza. O Deus que conhecemos é, pois e também, o primeiro instante do Universo. Desta forma, nega-se a sua inexistência – falamos de um Deus Momento – e mantém-se a sua sobrenaturalidade – desconhecemos a origem e a verdade sobre a matéria que formou o Universo em que julgamos habitar. A própria Matéria-Deus poderá ter sido fruto de si mesma.” Este parágrafo, ponto de partida do Ensaio Sobre a Matéria-Deus, deixou a Universidade de Edimburgo em profunda ebulição.


As relações de informação e conhecimento que se estabelecem entre os homens são o passo seguinte nas investigações de Said. Do professor ao aluno, do ilusionista ao espectador, sucedem-se horas e horas de entediante catalogação – as notas de Said registam mil duzentas e vinte e três relações - horas essas interrompidas pelo luminoso instante da descoberta: que dizer da relação que se estabelece num binómio saber-ignorância e que implica um laço-resultado para além do normal?


Para além do antrópico, meta humano. Meta Antrópico.


Escreve: “Estamos a lidar com o tempo em que o supremo conhecimento e a profunda ignorância sobre um facto se contactam. O intervalo em que, iniciada uma relação comunicacional, um Outro nos vai revelar algo que não sabemos, mas que nos mudará a vida é o mais próximo de Deus que nós, humanos, conseguimos estar. Que nome atribuir à tempestade lógico-emocional de certezas e aporias em que nos afundamos em segundos? À nossa frente está a omnisciência do nosso semelhante. E, por antinomia, a nossa amnisciência. Por fim, e sendo o momento já parte pretérita, o corolário: a vivência de um temor póstumo”.


Amnisciência, temor póstumo e refracção, do lado do sujeito passivo.

Omnisciência, consciência de impacto e inelutabilidade da revelação, do lado do sujeito activo;

Activados por um instante de comunicabilidade que abre um momento continuado;

são os factores essenciais para a existência do Intervalo Meta Antrópico.


Pela sua forte ligação à Arte, Said chega mesmo a afirmar que “este intervalo está intimamente ligado à noção de arte-metafísica de Charles Reginald Spaulding que nos diz “já não devemos tentar descrever e interpretar a Arte; antes necessitamos de compreender como a própria Arte vê o seu observador” ”.


O Intervalo Meta Antrópico provocou reacções desiguais na comunidade científica da época. Alexander Campbell Fraser, expoente máximo da Escola do Senso Comum, questionou a validade formal das suas investigações. Afinal, a teoria de Said questionava, subtilmente, a sua Filosofia do Deísmo. O célebre médico Joseph Bell, máxima autoridade da dedução, chegou mesmo a recomendar a Said, por carta, que “se dedique à teorização da Matéria-Deus, essa sim, contributiva para um maior enriquecimento das ciências filosóficas na Universidade de Edimburgo”.


Said, teimosamente, faz o contrário. E seria por assim fazer que viria a conhecer Tristán Umbría, em Agosto de 1900.




3 – T O L E D O


Tristán Umbría nasceu em 1868 no seio de uma família da pequena burguesia de Toledo. Cedo ficou órfão: sua mãe morreu por complicações no parto e seu pai, um republicano envolvido na revolução de 1868 e na constituição de 1869, acabou assassinado nos confrontos que antecederam a Restauração Borbónica, em 1874. Sem outros familiares directos vivos, Tristán foi enviado para o Colégio Jesuíta de Oropesa, a cerca de cem quilómetros de Toledo.


Desde muito cedo revela uma especial propensão para os domínios matemáticos. Com apenas 16 anos, Tristán já apresentara alguns desenvolvimentos interessantes no campo da geometria analítica, seguindo os caminhos de aproximação entre a geometria e os números, trilhados por Descartes e Fermat. Muito rapidamente, porém, o seu trabalho passou a centrar-se na sucessão de Fibonacci, nas suas implicações e consequências. É daí que nasce o seu resultado mais importante e sobre o qual trabalharia até à sua morte: a teoria da recorrência refractária, traduzida pela equação Ux = Fx + zKͤ


(lê-se “U xis é igual a F xis somado com Z vezes K elevado a E”)


e que explica que, numa relação (humana) de supra-infra conjugação em que exista um factor de inexplicabilidade conhecido por um elemento e desconhecido por outro, essa superioridade / inferioridade e a sua recorrência lógica poderão ser, de algum modo, aferidas.


Entusiasmado por ter conseguido traduzir matematicamente a teoria da afectação de Heinrich Von Kleist,

Legenda:

Teoria da afectação (von Kleist): quando a alma ou a força movente aparece em ponto diferente do centro de gravidade do seu movimento.


Umbría compreende que o “Teorema da Recorrência Refractária” explica, de forma lógica, o factor de inexplicabilidade que, de acordo com as suas notas, “só acontece nas estruturas escondidas da incerteza de uma relação que não se define, imediatamente, como portadora de factor de desequilíbrio”.


Na Equação de Umbría, condensa-se emoção humana, lógica e indeterminação em potência: Fx é o valor da sucessão de Fibonacci para o instante x, K é um parâmetro que varia no intervalo entre -1 e 1, elevado a E - o número de Neper, que relaciona potências. Finalmente, Z é o correspondente “factor de inexplicabilidade” associado ao momento em causa.


As anotações de Tristán Umbría deixam claro que a primeira motivação para este resultado esteve associada à previsão de fenómenos extremos: tremores de terra, furacões e outras catástrofes naturais. Tristán considerava que o conhecimento preciso do início de determinado movimento ou evento permitiria, sobretudo através da sucessão de Fibonacci – já então encarada por muitos quase como fórmula cabalística – obter dados sobre períodos de recorrência refractária, na medida em que estes eventos colocassem em relação pelo menos duas estruturas e, dessa relação, uma delas mudasse o seu curso normal e expectável, entrando em refracção.


A demonstração matemática dos resultados sobre que assenta a Equação de Umbría aconteceu na Sala dos Grandes Actos do Palácio de Fuensalida, em Toledo. Estávamos em finais de 1899. Toda a comunidade científica exultou com a tese de Umbría. O célebre matemático Eduardo Torroja Caballé recomendou-o ao Primeiro Congresso Internacional de Filosofia, a decorrer no verão seguinte.


E é na inseparável companhia de sua mulher, Lucía Villalobos, que Tristán Umbría viaja para Paris, onde iria conhecer Edwin D. Said.




4 – P A R I S


O Primeiro Congresso Internacional de Filosofia decorreu em Paris, entre 1 e 5 de Agosto de 1900. Foi presidido pelo Professor Émile Boutroux. Conferenciaram, entre muitos, Henri Poincaré, com “Princípios de Mecânica”, Bertrand Russell, com “A ideia de ordem e posição absoluta em espaço e tempo” e Ernst Schroeder com “Uma Extensão da ideia de Ordem”.

A Terceira Secção, dedicada à Lógica e História das Ciências, teve como relator o Professor Jules Tannery. Na sua intervenção inicial, Tannery enfatizou a união entre a ciência e a filosofia que, nas palavras do próprio, “se designará melhor por unidade”.

O mote dado por Tannery abria largas perspectivas de sucesso às conferências de Said e Umbría, inseridas precisamente na sua Secção. Não fosse a brilhante conferência sobre a Patafísica enquanto “ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam as excepções”, proferida por Alfred Jarry e as comunicações de Umbría e Said teriam sido alvo de um merecido destaque. Mas não. À excepção do próprio Jarry, todos os congressistas da Secção de Lógica as tomaram como triviais.


Apenas Alfred Jarry e Jonathan Fakenham, velho químico e teórico da fotogafia e pioneiro do cinema, assistiram a ambas as conferências. Relacionando-as de imediato, trataram de por em contacto Umbría e Said.

O encontro entre os dois pensadores aconteceu no penúltimo dia do Congresso. 4 de Agosto de 1900. Como anotou Fakenham, “mais não podia desaguar que num profícuo debate de várias horas”. E do fascinante consenso com que falavam de uma mesma realidade alcançada por dois caminhos não tão diferentes do saber, surgiu a ideia de um livro de autoria comum. O título seria A Short Sense of Omniscience: A Dialog Of Sciences.


Alfred Jarry ofereceu-se para o prefaciar. Há mesmo quem diga que Gestes et opinions du docteur Faustroll, pataphysicien teve como ponto de partida o fascínio pelas teorias de Said e Umbría. O mesmoé dito a propósito do seminal On Temporal Images que Jonathan Fakenham escreveria dez anos mais tarde, tornando-o num nome incontornável da teoria da imagem de inícios do século XX.


Porém, pelo desinteresse a que foram votados o Intervalo Meta Antrópico e a Equação de Umbría, o livro nunca chegou a ser escrito.




5 – F E C H O



Entre o génio e o acaso, registe-se o facto de Umbría ter conseguido, com a sua equação, prever o grande incêndio que devastou a Praça Zocodover em Toledo no final da primavera de 1898 (antecipando em duas semanas o histórico desastre). Para além da grande seca de 1906, previu também a sua própria morte, previsão na qual não acreditou por força da incerteza que envolve a determinação do momento inicial e pela implicação necessária de um segundo elemento.


Tristán Umbría morreu na madrugada de 13 de Junho de 1908, vítima de congestão cerebral, uma semana depois de uma fatal queda na escadaria central do colégio ter provocado uma contusão craniana irreversível.


Edwin Denholm Said não mais foi o mesmo depois do congresso de Paris. À excepção de um pequeno mas bem sucedido estudo sobre a religiosidade na obra de Dugald Stewart, nunca mais produziu um único trabalho. Ter-se-á suicidado em Agosto de 1912, em South Uíst, uma ilha na costa oeste da Escócia, onde permanecia isolado há vários meses. O seu corpo foi encontrado numa praia, sentado. A seu lado, longas notas contendo uma explicação do mundo, assistémicas, e, muitas delas, ininterpretáveis.


E uma frase final: “não podendo sequer supor-me na infra posição do meu intervalo, termino-me evitando-a, vencendo, assim, da única forma possível, a minha própria teoria”.



Cinquenta e dois anos depois da possibilidade de Edwin Denholm Said e Tristán Umbría escreverem A Short Sense Of Omniscience, Laura Adler investigou as vidas e obras dos dois pensadores. Durante seis anos viveu entre Edimburgo e Toledo. Escreveu um livro, com o mesmo título, que não alcançou qualquer projecção em qualquer círculo.


Adler nasceu em Londres, no ano de 1921. Diz-se que era dotada de uma inteligência ímpar e uma memória invulgar. Tinha umas mãos belíssimas e um olhar assustador. Morreu num estranho desastre de carro em 1981. Não deixou descendência.



F I M


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